sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A Cidade Multicultural




José de Souza Martins relaciona as raízes multicuturais transitivas de São Paulo com a experiência do seu cotidiano urbano.





O Monumento às Bandeiras na entrada do Parque do Ibirapuera foi inaugurado em 1953 e homenageia os fundadores de São Paulo. Para caracterizar seu ininterrupto progresso econômico e as sucessivas levas de imigrantes a cidade adotou o lema: ‘São Paulo: cidade que não pode parar’.

Sem dúvida, a cidade de São Paulo e a região metropolitana que lhe corresponde constituem um todo multicultural. É extenso e complexo o elenco das diversidades culturais que as caracterizam. Não só em decorrência da imigração estrangeira que, desde a década de 1870, a ela se destinou, mas também em decorrência da própria diversidade que caracterizou essa imigração.

Na mais signifi cativa delas, a imigração italiana, o grande fl uxo de dezenas de milhares de imigrantes oriundos da Itália que a São Paulo chegaram nem era constituído propriamente de italianos. Saídos de uma Itália recém-unifi cada e recém-constituída como Estado e nação, eram eles originários das múltiplas realidades políticas que o Risorgimento unifi caria, originários de culturas regionais que constituíam, então, o mapa da diversidade italiana. Aqui chegavam falando os dialetos de suas regiões de origem, trazendo costumes locais e tradições próprias. Ainda há bairros de São Paulo em que muitos falam português com sotaque napolitano, calabrês, mantovano ou vêneto.

Tornaram-se italianos no Brasil, através dos fi lhos que eventualmente foram para as escolas italianas de cidades como São Paulo aprender a língua da pátria tardia dos pais, língua que nem mesmo os pais falavam. São Paulo tornouse, nessa época, uma cidade característica de duplicidades culturais, em que se falava a língua materna ou o dialeto materno em casa, fosse qual fosse, e se falava português com forte sotaque estrangeiro nas ruas. Não é casual que um paulista de quatrocentos anos, o engenheiro Alexandre Marcondes Machado, que adotou o pseudônimo literário de Juó Bananere, tivesse inventado um irônico dialeto ítalopaulistano em seus escritos e que seu primeiro livro, La Divina Increnca, publicado em 1915, paródia paulistana de A Divina Comédia, de Dante, encarasse a multiculturalidade como confusão e não como encontro.

Nessa perspectiva, em diferentes autores, o português com sotaque estrangeiro e mesclado com palavras estrangeiras, desde o início do século XX foi em São Paulo a língua da comédia. Menos para ironizar o imigrante e muito mais para sugerir um olhar falsamente estrangeiro que pudesse ver criticamente os absurdos urbanos e políticos da cidade que se transformava sob infl uxo do dinheiro que a ela chegava pela exportação do café e se multiplicava nas fi nanças, na indústria, no comércio. Dinheiro que embaralhava as relações sociais, especialmente as diferenças sociais, corroía os preconceitos e invertia em curto tempo as relações de dominação e de poder.

Em sua obra, Bananere traça um retrato, de sonoridades intensas, da mentalidade cotidiana da população paulistana dos anos 1920-1930, seu modo de reconhecer a cidade e de viver as contradições da vida. Imigrantes que se tornaram brasileiros na geração dos netos, numa lenta migração cultural para a cultura da sociedade de adoção, que tampouco era uma cultura sólida, pois acabaria sendo uma colcha de retalhos de contribuições de várias origens, dentre elas as culturas regionais italianas e dos imigrantes estrangeiros em geral. É o que foi se ver nas composições de um descendente de italianos, João Rubinato, que, em percurso inverso ao de Bananere, adotou um pseudônimo brasileiro, Adoniran Barbosa. Sua obra musical e popular, também irônica, que trata da vida dos simples, é escrita numa linguagem brasileira residual, em que há muito do sotaque, sobretudo italiano, dos bairros operários de São Paulo. Muitos acham que se tratava de um linguagem forçada, como a de Bananere. Na realidade, Rubinato falava exatamente daquele modo. Ao tratar de temas do cotidiano da cidade, como em “Saudosa Maloca” e “Trem das Onze”, traduz o sotaque numa linguagem disfarçadamente irônica que narra os pequenos dramas vivenciais de trabalhadores e boêmios, como ele.

Essa diversidade teve inúmeras outras e consagradas expressões, numa espécie de reconhecimento e acatamento da multiculturalidade que separava as novas gerações de fi lhos da geração unicultural ou, eventualmente, bicultural dos pais. Foi o caso de um programa radiofônico de grande sucesso nos anos quarenta, a Escolinha de Nhô Totico. Esse era o apelido de Vital Fernandes da Silva, nascido no interior de São Paulo, fi lho de uma italiana com um brasileiro da Bahia. Portanto, multicultural ele mesmo, porque nascido e educado numa terceira cultura, a cultura caipira, dos antigos descendentes de índios e brancos. Em sua escolinha radiofônica, Nhô Totico fazia as vozes de diferentes personagens, da professora brasileira aos alunos italianos, espanhóis, sírios, portugueses e japoneses. Fazia da diversidade de origens, tão característica da São Paulo da época, um painel pluralista unifi cado pela escola e pela professora brasileira, portanto, pelo convite à superação das diferenças culturais por meio da educação.

Mais tarde, nos anos de 1950, expulsa pela crise da lavoura canavieira e por episódios de seca e atraída pela nova industrialização puxada pela indústria automobilística, a grande e intensa corrente de migrantes do Nordeste do Brasil diversifi cou ainda mais a cultura paulistana. Não só pelo modo de falar, mas também pela culinária e pelos costumes os nordestinos acrescentaram a essa cultura local traços próprios de sua cultura de origem. Assim como em São Paulo há bairros caracteristicamente italianos, espanhóis, árabes, alemães, judeus, orientais, russos, ucranianos, há também bairros caracteristicamente nordestinos. Nas décadas mais recentes, a imigração latino-americana deu novas cores à cidade, especialmente a imigração de bolivianos. Sobretudo a cultura alimentar desses diferentes grupos nacionais, que pode ser conhecida através dos muitos restaurantes que os representam, induz facilmente o visitante e a própria população da cidade a reconhecê-la como cidade multicultural. E o mesmo se pode dizer em relação à sua diversidade religiosa, que vai da sinagoga à mesquita, do templo protestante e evangélico a uma grande diversidade de igrejas católicas organizadas em torno de diferentes devoções que são também expressões, sem dúvida, da diversidade cultural. Pode-se acompanhar a missa com cântico gregoriano na Igreja de São Bento, a missa popular num santuário de Santo Amaro, a missa ortodoxa na Vila Mariana, o culto protestante no centro da cidade, a celebração muçulmana na Avenida do Estado, o culto judaico numa das várias sinagogas, o culto pentecostal numa igreja da Vila Pompéia ou da Baixada do Glicério, ou ainda o culto protestante ao som de balalaicas numa igreja de imigrantes russos na Vila Prudente ou, ainda, o culto protestante numa igreja coreana da Luz.

Mas São Paulo é multicultural não porque seja historicamente aberta à diversidade e à tolerância. Ao contrário. Carrega em sua história o peso de duas escravidões e de todos os cerceamentos e interdições que as escravidões acarretaram. De um lado, a escravidão indígena, formalmente cessada em meados do século XVIII, e, de outro, a escravidão negra, abolida em 1888, numa cidade que, tendo poucos escravos, antecipou-se de vários modos ao fi m do cativeiro. Menos por generoso compromisso com a idéia da liberdade e a da igualdade e muito mais pelo estorvo que a escravidão representava numa sociedade faminta de mão-de-obra barata, que já providenciara o estabelecimento de um fl uxo regular de imigrantes e trabalhadores livres para suprir sua demanda de trabalhadores. Em termos econômicos, o escravo era um prejuízo.

Dessas escravidões há remanescentes na língua, na culinária, nas religiões, nos costumes. Há até mesmo remanescentes de hibridações ocorridas no passado, no tempo da escravidão indígena, como é o caso do Saci-Pererê, ente mítico de origem indígena que, na versão africanizada e já como menino negro de uma perna só, se difunde através das histórias infantis, como personagem peralta e povoa ainda hoje o imaginário das crianças. Seu próprio nome, Saci-Pererê, é indígena. Tornou-se negro na mentalidade popular no século XVIII quando a escravidão indígena foi abolida e aumentou o fl uxo de escravos negros para São Paulo, especialmente para as plantações de cana-de-açúcar que fl oresceram no interior da Capitania.

Como demonstrou Renato da Silva Queiroz, em seus estudos sobre o tema, o Saci-Pererê é ente liminar, fi gura mítica dos limites e fronteiras, que costuma aparecer nos mourões das cercas que dividem as propriedades na zona rural. É compreensível que no século XVIII ele tenha atravessado esses limites e passado para o lado dos novos subalternos, os escravos negros, e assumido sua cor e sua identidade para continuar sendo indígena numa sociedade que, por ser estamental, tinha fronteiras mais ou menos rígidas entre as raças, as etnias e as categorias sociais. Essa transgressão cultural do Saci-Pererê foi a primeira manifestação fortemente simbólica de multiculturalidade adaptativa na região de São Paulo.

Não é estranho que nessa época o abade de São Bento tivesse pago a um escravo negro de sua Ordem, um feiticeiro, para que tirasse o banzo de seus cativos, o representante de uma emblemática ordem católica recorrendo ao feitiço para livrar seus escravos de mau olhado e macumba. Um reconhecimento de diversidade e multiculturalidade não convergentes, como se a sociedade fosse composta por uma estrutura de camadas culturais distintas e específi cas, cada qual com sua própria lógica, seus valores e seus âmbitos. A multiculturalidade foi durante muito tempo e, num certo sentido ainda é, um modo de vida no qual as pessoas transitam cotidianamente entre diferentes culturas, conforme suas funções numa vida segmentada de convergências lentas e difíceis. Algo que persiste, em práticas como a da freqüência de professores de nossas universidades aos terreiros de umbanda e até sua adesão ao candomblé e sua iniciação nas tradições dessa orientação religiosa africana e negra, ao mesmo tempo que profi ssionalmente mergulhados no mundo da razão.

É na religião e na religiosidade, justamente, que encontramos as melhores indicações dessas sobrevivências, recurso muito paulistano de continuar sendo o que se foi quando se tem que deixar de ser o que se é. Se o mercado dilui e uniformiza os interesses e as identidades, na fi gura do pedestre e do morador, as religiões asseguram nichos de sobrevivência das emoções e crenças, na contra-identidade resistente às diluições e desfi gurações. É isso que faz de São Paulo uma cidade peculiar e multicultural. Não porque simplesmente acolha sem confl ito a diversidade cultural dos que vão chegando, mas sobretudo porque assegura a cada um a experiência viva da diversidade, permitindo-lhe ser o que sempre foi e, ao mesmo tempo, ser o novo da convivência cotidiana das convergências e inovações.

Não é de modo algum estranho que numa cantina do Brás, ainda um bairro italiano, embora menos do que outros, se possa encontrar um descendente de japoneses cantando tarantelas ou um negro do Bixiga confessando ao padre seus pecados em calabrês. Ou que tivesse havido um francês, como o sociólogo Roger Bastide, protestante e calvinista de origem, mergulhando profundamente nas culturas africanas. Tão profundamente que pôde descobrir que a negritude não está na cor da pele mas na estrutura dos sonhos, no modo de sonhar. São exemplos de como a multiculturalidade paulistana é essencialmente um convite a continuar sendo o que sempre se foi para se tornar alguém novo e diferente. Um convite à criatividade cultural, ao trânsito constante e livre entre padrões culturais diversos.

Nesse sentido, a multiculturalidade da cidade de São Paulo e seus arredores pode ser melhor compreendida como multiculturalidade transitiva, o que a torna bem diferente de metrópoles reconhecidamente multiculturais que o são porque se caracterizaram pela colagem de uma certa diversidade de culturas. Nesses casos, no entanto, trata-se de uma multiculturalidade de confi namento, em que a diversidade é aceita como agregação de diferenças culturais e não como canal de trânsito e comunicação entre as diferenças. Com isso, não quero dizer que a multiculturalidade deva ser pensada em termos de formas rígidas de organização da diversidade e sim como diversidade que pode ser pensada a partir de duas tendências culturais opostas.

A multiculturalidade transitiva de São Paulo, apesar de suas referências históricas tendentes ao confi namento, acabou se impondo pela complexa necessidade do trânsito multicultural numa cidade que foi recriada urbanística, arquitetônica e populacionalmente ao menos três vezes na época contemporânea: na década de 1880, na de 1910 e na de 1960. Foram momentos culturalmente cataclísmicos que agregaram novos personagens ao cenário e, ao mesmo tempo, anularam velhos enredos.

De modo que a rigidez cultural de tradições e costumes arrefeceu para viabilizar a nova e recíproca adaptação dos moradores antigos e o acolhimento dos novos moradores. Seria um erro afi rmar que os paulistanos estão incondicionalmente abertos à multiculturalidade. Estão no que se refere aos aspectos propriamente cotidianos da convivência, nos espaços em que a pluralidade é inevitável, não se podendo deixar de reconhecer que essa pluralidade de convivência é grande responsável pela corrosão de identidades prévias e pela diluição de eventuais resistências culturais à mudança e à adaptação. Mas não estão em relação aos aspectos mais resistentes do privado e da vida familiar e comunitária, naqueles aspectos invulneráveis à ressocialização pluralista, caso dos casamentos em algumas das culturas de origem que persistem em São Paulo, razoavelmente protegidas contra os de fora, sobretudo quando envolvem prestações rituais entre a geração dos mais novos e a dos mais velhos, como no caso de japoneses e coreanos. Tem sido característica, no entanto, do conjunto da população, a diluição desses bloqueios com o passar das gerações, que é o que caracteriza a transitividade a que me refi ro, num signifi cativo equilíbrio entre manter elementos do essencial das culturas de origem e assimilar complementarmente o que com elas não colide ou que as completa.



O sociólogo José de Souza Martins é Professor Emérito da Universidade de São Paulo. Publicou livros sobre a questão agrária, migrações, movimentos sociais e a vida nos bairros e periferia paulistanas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Nossa !
Não achei resposta nenhuma para o meu trabalho para o meu Colégio.Muita coisa a escrever !
Poxa...