terça-feira, 1 de junho de 2010

Historinha




Há tempos venho ensaiando para me colocar em posição e a favor da escrita novamente. Não faço isso desde o termino do meu primeiro livro – “BioUrban, você sente o que explica?”.

A verdade é que eu precisava do distanciamento temporal para me desintoxicar de minhas próprias historias e mentiras.

Quase tive medo da escrita.

Não conhecia seu poder e fascínio. Nunca havia sentido antes tão sublime gosto. O que fazia era escrever sobre trivialidades e, no máximo, deixar que uma ou duas pessoas lessem tamanho disparate de uma mente egocêntrica e juvenil.
Hoje, sei que as palavras me saem sem esforço ou medo. Sei o que escrever e tenho perfeita condição para me portar a tal exercício. É por isso que me ponho a frente desse computador, para ver as letras formarem palavras e, assim, registrar duas idéias que me despertaram tamanho interesse.

Venho refletindo a respeito dessas (novas idéias) há, no mínimo, dois anos. Escreverei sobre urbanismo paulistano e sua gentrificação para os próximos dez anos e tentarei unir o assunto a um tema que dispenso boa parte do meu tempo em construções e críticas: arte contemporânea, o grafite e a pixação no contexto ambiental de uma cidade como são Paulo.

Ontem, também de madrugada, meu pai acordou mais cedo que de costume para ir trabalhar. Ele levanta às cinco e meia da manhã diariamente para enfrentar um dia de trabalho que percorre dois períodos: manhã e tarde. Ocupando, também, boa parte de seu tempo entre o percurso do ir e vir, o restante ele passa consertando maquinário pesado da indústria pneumática e hidráulica. Questões físicas sempre permearam minha educação. Começamos a conversar sobre a cidade de São Paulo.

Dizia ele que (a nova lei do inquilinato é boa). Disse assim, jogada no silêncio da madrugada com cheiro de café passado em coador de nylon. Sem justificar ou discorrer argumentos, eu já sabia o que significava. Ele queria ouvir minha opinião, caso eu já tivesse uma formada. O uso da lingua, em minha casa, sempre foi de função cortante. Mantê-la afiada, era o primeiro exercício.

Sentado em uma cadeira na cozinha e levemente encurvado, como um caracol sem casa, sobre a mesa, mantive-me em busca da melhor posição para terminar de pintar uma ripa de madeira. Reposicionei o corpo como quem está prestes a fazer o grande discurso de sua vida. Mas não era para tanto. A curva. O assunto era a lei e eu estava na cozinha, quase vesgo de tanto forçar os olhos em linhas muito finas e meu pai nem ao menos tinha penteado o cabelo.
Mesmo assim era minha chance de ensinar o velho. O que se pode fazer com algumas palavras bem elaboradas e justapostas. Uma aqui, outra acolá e pronto. Está pronto um discurso político capaz de angariar votos de quem quer que seja que acorde às cinco da manhã.

Trabalhadores!


Assim comecei.

Pai,
A lei de inquilinato só favorece ao proprietário do imóvel que agora possui grande aparato jurídico para expulsar quem quer que seja de seu imóvel e em um prazo ínfimo.
Eu já esperava os ordinários contra-argumentos:

“mas agora com essa lei será mais fácil alugar, eles (os proprietários) não exigirão esse monte de coisa que eles exigem”, e “ficará mais fácil para alugar e o preço do aluguel vai cair, porque os proprietários agora não terão medo de alugar seus bens”.

Era tudo que eu precisava ouvir para massacrar esse argumento, como barata, com uma pata quebrada se arrastando pelo chão da cozinha. Fácil. Sem escândalo e ela sem saída, assim, eu usaria todos os meus 80 kilos contra as fracas palavras. Estava muito fácil.

Pai,
Só na cidade de São Paulo existe um déficit habitacional de 1,5 milhão de moradias. O que significa que não existe casa para todos. Nem se todos os imóveis estivessem disponíveis para aluguel.
A nova lei de inquilinato vem acompanhada de uma série de medidas políticas e judiciais que seguirão pelos próximos anos. Primeiro modifica-se a lei para depois intervir diretamente na estrutura física da cidade. O que a prefeitura de São Paulo está fazendo é garantir os direitos dos proprietários de imóveis para depois realizar a maior gentrificação que já existiu na historia da Cidade de São Paulo. Outras leis, como o plano diretor da cidade e as novas políticas de investimentos sociais beneficiarão somente um pedaço da cidade. A prefeitura não mais expandirá os investimentos do Estado para além de um raio imaginário previamente demarcado por arquitetos e urbanistas, políticos, sociologos e alguns segmentos econômicos. Estamos copiando modelos já existentes.

São Paulo diminuirá. Cidade Compactada.

Imaginemos.

A partir de hoje a Prefeitura e o Governo do Estado só investirão em obras que estão dentro desse tal raio previamente demarcado após promulgado o novo Plano Diretor da Cidade de São Paulo. Tudo ou qualquer outra coisa que esteja fora desse espaço será esquecido ou dissimulado. Inexistente, excluído, banido, deixado para fora. (Já ocorre sem lei. Imagina com Lei)
Primeiro fortaleceremos os donos de imóveis para que a lei os proteja, garantindo assim o direito à propriedade privada como garante a constituição brasileira. Depois exterminaremos todas as favelas e cortiços que estejam dentro do raio.

Voilá

Criaremos a cidade perfeita.

Com infra-estrutura e qualidade de vida para os PAULISTANOS (ou qualquer outro que tenha dinheiro para viver em SP).

O que eles não falam meu pai é que a grande maioria das pessoas (nordestinos e negros, sobretudo) não poderão mais morar próximos, por exemplo, da Avenida Paulista, do Centro ou da Berrine. A maioria das pessoas que vivem em São Paulo não são proprietários de onde moram. Elas terão que sair, pois não conseguirão pagar os alugueis. Porque o IPTU subirá correspondente aos investimentos que o Estado fizer na região. E por um raciocínio lógico, sem muito esforço, nós sabemos que quando sobe o imposto predial o aluguel aumenta.
A população que vive em cortiços, casas ou apartamentos alugados próximos a áreas com grande infraestrutura e aparato socio-cultural darão lugar para um outro tipo de morador que chegará junto com os investimentos bilionários. Você já percebeu que as placas de informação e destino do metro já estão sendo trocadas por comunicação bilíngüe? (inglês)

Neste momento o café fica pronto e o aroma irresistível toma conta da casa.
Em uma velha caneca de porcelana, suvenir de uma viajem ao Chile, ele coloca café com leite. Enquanto observa o pão com manteiga sendo aquecido na torradeira Black & Decker. Combinação realizada há mais de cinqüenta anos nesta casa.


“Não. Eu não percebi isso não.”
“e porque está assim?”

Ora meu pai, o Brasil não sediará a copa em 2014 e o Rio de Janeiro, as Olimpíadas? Pois então. O Estado começou a trabalhar desde já. Mas veja bem, não se iluda com a palavra “trabalhar”. O Estado está reformulando e ampliará as vias e transporte, comunicação e uma serie de outras bem feitorias que são necessárias para abrigar esses tipos de eventos internacionais. Capitalismo Global. São exigências que serão atendidas porque o Brasil assinou o acordo para modificar essas estruturas e, assim, receber os turistas, que virão em decorrência do esporte, de uma maneira bem próxima ao dos países deles. Com isso, meu pai, a cidade e todos que moram nela sofrerão o transtorno causado por uma modificação rápida e que visa somente atender as especificidades daqueles que chegarão ao país com DINHEIRO. A cidade, ou parte dela - essa parte que eu já disse do raio imaginário - sofrerá profundas modificações. A cidade do Rio de Janeiro será aquela que mais vai sofrer.



continua ....

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