sábado, 23 de junho de 2007

A preparação da morte

leio – “A vida como ela é”– Nelson Rodrigues




A preparação da morte


Liguei apenas duas vezes.
A primeira para saber a que horas seria o exame; e a outra para saber seu resultado.
Neste meio tempo cozinhava.
A consulta seria ás 17:00h, mas não haveria outra coleta de sangue. O feijão demorou mais de uma hora para ficar vermelho como terra. Adormeci enquanto aguardava.
O primeiro sono.
A segunda informação vinha acompanhada de uma voz pouco firme: ah! Ele me disse que deu positivo. Mas é para eu fazer outros exames para confirmar. Ficou acertado uma nova coleta dentro de, no Maximo, uma semana.
Meu coração dispara. Fico tenso e relembro de falas, contatos físicos e emocionais já vividos nestes 24 anos de muitas experiências sensoriais.
O feijão fica pronto. Tempero-o com bacon, alho e sal.
Relembro minha infância.
Começo a preparar o arroz. A alegria se faz presente, uma estranha alegria. Tenho, naqueles instantes, o retorno do prazer. Só pensamos na vida quando, por algum motivo, estamos prestes a perdê-la. Nossos dias são simples como o preparo do trivial arroz com feijão. Também fiz frango com batatas. Assada e com molho de requeijão.
Fui correr.
Corri no parque perto de casa, enquanto ele fazia compras no supermercado.
Pensei em rucula.
Antes de sair para fazer exercícios separei o feijão, o arroz e o frango com batatas que levaria, como jantar, àquele que há muito sofre de carência humana de cuidados simples.
Aos 500 metros do fim do meu primeiro km percorrido, estava no meio. Não sabia se reagiria racionalmente deixando-o ou continuaria a viver daquilo que sempre foi o meio, o combustível do porque de continuar a descobri o mundo: meus sentidos. Consegui percorrer 2 km. Algumas reflexões, abdominais e uma serie na barra.
Sentia-me bem. Saudável.
Esperei meu pai chegar. Arrumei uma sacola com a comida sem que percebesse. Moramos não muito longe um do outro. Nobre pobre.
Chegando em seu apartamento tive a impressão de limpeza. Ajudei-o a subir as compras. Chegamos juntos. Guardamos. Aguardamos em silêncio o fim daquela noite junto ao peso que uma informação que se fez cair sobre nossas costas. Ela não ficava pronta. Demorou mais que o feijão.
Disse para ele tomar um banho para que eu servisse o que havia preparado em casa. No apartamento não há muitos utensílios de suporte. Fiz uma salada de rucula com morangos e queijo branco junto a um molho de mostarda, iogurte e shoyo. No prato, montei a estética de um prato saudável da comida popular brasileira: arroz e feijão um ao lado do outro como que para o branco do arroz destacar-se com o vermelho terra do feijão. Acima – surgirá a dúvida da existência de camadas até mesmo em um prato ? – ficou o frango e as batatas com o molho de requeijão logo, também branco. Para quebrar com a predominância do branco fui até a geladeira e arranquei junto ao maço de manjericão um ramo de folhas verdes. Disponibilizei-as em cima do frango. Agradou.
Enquanto se trocava coloquei à mesa. Tudo pronto. Fiquei ao seu lado enquanto mastigava com toda a vontade que a fome de vida nos desperta a partir daquilo que nos mantem. Pouco falamos. Estávamos mortos.



































Jeff Anderson

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